segunda-feira, 11 de junho de 2007

"Memorial do Convento" - Saramago

Análise das Primeiras páginas
(relação do rei com a rainha, infidelidades, ironia presente em toda a obra)

Nas primeiras páginas, é-nos descrita a relação entre o rei e a rainha. A corte é o centro em redor do qual se organiza o Poder.

O rei e a rainha são representantes do poder e da ordem, mas também da repressão que naturalmente é característica dum regime absolutista.

A relação conjugal resume-se a um único objectivo: dar um herdeiro à coroa. Não existe nenhum envolvimento afectivo entre o rei e a rainha. O rei cumpre “vigorosamente” o seu dever de marido e vai ao quarto da rainha duas vezes por semana a fim de concretizar o seu dever de rei. Porém, a “devota parideira” é já culpabilizada por “mais de dois anos” de esterilidade pois “que caiba a culpa ao rei, nem pensar, (…) porque abundam no reino bastardos da real semente...”

O cerimonial de que se reveste o encontro periódico do casal revela-nos uma relação em que há ausência de amor e que só se justifica na fecundidade e nunca em si mesma, como podemos verificar pelo ambiente anti-erótico, pelo excesso de roupas, pela presença das camareiras e dos camaristas, enfim, pelo artificialismo que rodeia um acto que deveria ser espontâneo e natural. (Será lido em voz alta, por três alunos, o excerto, constituído por três parágrafos, que se inicia em “Vestem a rainha e o rei camisas compridas...” até “Deus, quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se de mulheres.” (pp. 15/17).

A relação contratual entre D. João V e D. Maria Ana dá origem às infidelidades do rei e aos sonhos da rainha. A infidelidade do rei, já aludida quando é referida a existência de bastardos, é satiricamente referenciada quando o rei diz que as freiras o recebem “nas suas camas”, nomeadamente a madre Paula de Odivelas.

Dos sonhos da rainha dá-nos conta o narrador, logo no início da obra, quando escreve:

São meandros do inconsciente real, como aqueles outros sonhos que sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los, quando el-rei vem ao seu quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos açougues, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e pegajosa que cheira ao que cheiram os homens quando descarregam, enquanto o infante D. Francisco, seu cunhado, cujo antigo quarto agora ocupa, alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado em andas, como uma cegonha negra. (p.l7).

Os sonhos da rainha com o seu cunhado, o infante D. Francisco, deixam-na atormentada pela consciência que tem de estar em pecado por não ousar revelar em confissão aquilo que acha vergonhoso, um crime contra a castidade. É por isso que D. Maria Ana cumpre penitência na oração e peregrinando pelas igrejas. A rainha continuará a sonhar e a esconder, do seu confessor, os sonhos até ao momento em que o próprio D. Francisco os vai destruir revelando as suas verdadeiras intenções:

(...) Ora essa, que conversa tão imprópria de cunhados, el-rei ainda está vivo e, pelo poder das minhas preces, se Deus mas ouve, não morrerá, para maior glória do reino, tanto mais que para a conta dos seis filhos que está escrito terei dele, ainda faltam três, Porém, vossa majestade sonha comigo quase todas as noites, que eu bem no sei, É verdade que sonho, são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que nem ao confessor confesso, mas, pelos vistos, vêm ao rosto os sonhos, se assim mos adivinham, Então, morrendo meu irmão, casamos, Se esse for o interesse do reino, e se daí não vier ofensa a Deus nem dano à minha honra, casaremos, Prouvera que ele morra, que eu quero ser rei e dormir com vossa majestade, já estou farto de ser infante, Farta estou eu de ser rainha e não posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve o meu marido, não vá ser pior outro que venha, Acha então vossa majestade que eu seria pior marido que meu irmão, Maus, são todos os homens, a diferença só está na maneira de o serem, e com esta sábia e céptica sentença se concluiu a conversação em palácio (...) (Capítulo X, pp.ll3Jll4)

Todo o capítulo é dominado pela ironia, sendo o rei e a rainha descritos caricaturalmente, numa linguagem jocosa que tenta destituí-los do seu estatuto real e aproximá-los das pessoas vulgares e mortais.

1 comentário:

alexandrecastro disse...

Embora saiba que a curiosidade matou o gato, confesso, que não resisti a uma espreitadela”!
E do que vi e do que li, lapidarmente, só me ocorre uma ideia:
Há alunos com muita sorte…!